SALTOS ORNAMENTAIS NO ESCURO.

Ilustra de Vitor


Porca Prenha

-A escrita é um bicho raivoso dentro da gente. Ontem escrevi tanto que meu braço parecia uma tora de árvore perdida no rio da mesa da patroa. – Disse Zacarias.

– Oxente! Vai um trago de porronca, Zaca? – Perguntou Nestor.

– Tem outra: escrever demais enruguece a vista.

– É mermo! Os caras ceifadas dos livros da casa de sinhazinha tem tudo cara de velho passado. Ao redor dos zôlho parece as dunas do maranhão. Umas, uma, linhas invocadas de velhice.

Davam enxadadas certeiras no chão seco e sem vida no quintal da fazenda. Um passo a mais estouraria o dedão do outro e logo entrariam em desavença. Daria fim na prosa lírica de manhã de terra molhada de garoa; colocariam panos envelhecidos na sela do cavalo doado sem olhar os dentes e partiriam sem rumo em busca de porta onde lhes dessem canseira e um prato raso de comida. Homens pobres e banguelos, pessoinhas de bom coração. Tão almas límpidas que eram forasteiros e não tinham chapéus boiadeiros para se envaidecerem no deserto do abandono de suas próprias vidas.

– Ê, Zaca!
– Fala cabra!

– Vós já lestes coisa que escorreu choro da vista?

– Vamo deixar de prosa e vamo trabalhar é que é.
– Samo de compadria antiga. Fala macho, que foi? Pode se abrir que sou teu camarada.

Zacarias fez migué de choro. Enxugou o suor da testa, dando uns estalos nos dedos. Desses que os peões dão no alto das obras dos prédios quando estão agoniados de quentura na venta. Procurou uma dose de pinga pra arder na goela e ai combinaria com a pergunta tragicômica do camarada:

- É, é, é. Vamo deixar dessas perguntas Nestor. – Disse Zacarias enrolando a fala como esses gagos encabulados que cruzam de frente com uma galega bonita. Ficaram calados. As enxadadas pareciam machadadas violentas. Como se a terra tivesse culpa das desilusões do mundo. O sol ardia...

- Calma, calma, homem! Não chore! a terra não sangra. Roça devagar se não tu quebra o cabo da enxada. dá um abraço aqui. Quero sentir o teu cheiro de marcenaria molhada. Dá que vou deixa dessa prolongação de raiva. – Disse Nestor.

Os dois apertaram-se forte e demoradamente como se o gambá fizesse as pazes com a raposa e do nada começou chover forte na terra seca de inferno rachado de sertão provocando sorrisinhos nos cantos. Se a vida fosse literatura pura, brotaria uma flor de plástico bem no meio deles, e despencaria frutos aos montes, e os cães correriam destrambelhados adubando os campos alegres, e as moças pegariam a ventania vespertina de portas abertas.

- Sabe, Nestor o dia que mais chorei na vida foi o dia que li o bilhete da Carminha. Num papel de pão amarrotado, ela disse que estava engordando como uma porca prenha, mas na verdade era uma menina que viria chorar o mundo.

Nestor puxou do bolso uma caixinha de fósforos úmida tentando dedilhar um samba antigo:

- Hoje tá arre de bom pra beber. Sabe que toda taberna que vejo me lembra Noel rosa?
- É. E todo passo bêbado me lembra Cartola. Os dois caminharam e olharam pro sol.

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O livro de estréia de Diego Nascimento MoraesSaltos Ornamentais no Escuro” poderia terminar aí, que já seria perfeito, já em seu primeiro conto; “Porca Prenha” Diego banha o leitor com uma força e sensibilidade incrível, preparando para o que o livro virá trazer. O livro não teria forma melhor de começar, a história de 2 homens, trabalhadores braçais que se banham com uma sensibilidade encontrada na escrita. “-A escrita é um bicho raivoso dentro da gente. Ontem escrevi tanto que meu braço parecia uma tora de árvore perdida no rio da mesa da patroa. – Disse Zacarias”. Diz Diego, falando deste trabalho tão árduo e complicado para alguns que é escrever. A literatura de Diego Nascimento Moraes é uma literatura crua, forte, mas com uma sensibilidade que abre espaço para criações poéticas, imagens poéticas derramadas nos contos, estórias contadas sobre homens comuns, escritores e artistas solitários em que às vezes o escritor os coloca em situações Kafkianas com doses de poética Baudelairiana como no conto “O Adestrador de Tempestades”.

“Saltos Ornamentais no Escuro” é um livro rápido com contos curtos, para ser lido bem devagar, com bastante cuidado e atenção, os detalhes se mostram de maneira boa e surpreendente para o leitor desavisado. Os contos não são explicados ao leitor, e sim entregues como novas aparições em um mundo estrangeiro, mareado, coberto por uma neblina que tem que ser dissipada, mas neblina que sempre volta.

Algumas histórias aparecem dialogando entre a escrita literária, teatral e cinematográfica, e é neste caminho que parece que Diego Moraes está andando cada vez mais, observando os contos novos que são postados em seu blog “Urso Congelado”, onde você pode encontrar os contos de “Saltos Ornamentais...” e as mais recentes criações do escritor.

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