CORAÇÃO.
-Lembra
daquele carinha de cabelos lisos e pintados de loiro, que escreve?
-Qual
deles? Têm tantos assim nessa cidade.
-Benjamim.
Escritor.
-Sei
dele. Qual é?
-Lançou
um romance por um edital.
-Ganhando
um trocado.
-Recebeu,
e agora vai escrever um livro sobre literatura e cultura pop.
-De
lascar, heim!
-É,
a porra do trabalho dos sonhos.
-Que
terror daquele cara escrevendo sobre literatura.
-Que
terror daquele cara e dos contos dele.
-São
terríveis. Mas foram publicados!
-E
tu já leu os poemas?
-Piores.
-Uma
merda. Não acredito que tipos como esses são os futuros gênios da
literatura na cidade.
-Não
acredito que esses são a galera que tão escrevendo e pulicando e
querendo de alguma forma acontecer!
-E
nem posso falar disso com outras pessoas, que logo dizem que sou
invejoso.
-É
só o que falam hoje. Já notou que hoje em dia o cara tem que gostar
de todo mundo, se você fala que não gosta de alguém, do que ele
produz, isso é inveja, não é sua opinião, é simples inveja.
-
É foda.
-E
como vai teu romance?
-Tá
indo bem. Dei uma parada nele agora, mas próximo ano vou continuar.
É bonito ver o negócio tomando forma, parece um ectoplasma que sai
das minhas mãos e fica vagando pela sala enquanto bato nas teclas
daquele computador. Parece que fico envolto de uma névoa espessa e
bonita. Me acalma.
-Isso
é bom, cara.
-É,
só sinto calma na minha alma quando escrevo.
-Isso
é bonito.
-E
teus poemas? E teu romance? Já tava quase acabando, não tava?
-Sim.
-E
então?
-Parei.
-Por
quê?
-Não
consigo mais. Acho que não dá mais pra isso.
-Por
quê?! Tu escrevia belos poemas, pareciam bailarinas dançando em um
coração ensanguentado.
-O
problema é esse, o coração. Não sei onde o meu foi parar.
-Só
é possível
escrever se
tiver algo
batendo forte dentro do peito. Nem que seja de dor. Mas tem que ter
um coração batendo.
-Eu
não sinto mais o meu. Não sinto que tenho um coração dentro do
meu peito. Não sinto mais quase nada, só o cansaço de todos os
dias juntos dentro da minha cabeça.
-Foda,
cara. Você não pode parar de escrever. O que acha que é? Teu
emprego, a falta de grana, mulher?
-Não
sei. Não tô sentindo falta de nada, no momento. Mas não é isso. É
só que não sinto mais meu coração batendo dentro de mim. Perdi as
palavras que zuniam dentro da minha cabeça, que me colocavam pra
ficar noites inteiras sentado escrevendo sem dormir. Eu ia pro
trabalho no gás de chegar em casa e continuar assim, passava
semanas.
-Quando
tu entrava numas de escrever poemas e teus
romances, ficava
semanas sem aparecer aqui no bar ou em qualquer outro lugar.
-Mas
agora eu passo as noites assistindo o corujão. E quando amanhece tô
só o bagaço pra ir ao trabalho.
-Foda
cara, mas vai ver isso vai passar, vai ver é só uma fase ruim.
-Não
sei, acho que não. Me sinto morto e enterrado pra vida. Pode fazer
minha lápide e colocar; poeta, com 460 poemas, quatro romances nunca
publicados e um inacabado. Tô saindo com estilo, deixando obra
póstuma.
Os
dois riram no meio da multidão no bar, entre o barulho de outras
vozes e copos se tocando. A vida dos dois rapazes e de tantos outros
ali, continuaria por muito tempo, mesmo que em muitos momentos se
sentissem mortos por dentro.
02/01/12 04:11 - 04:34
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