SATURNINO.

Ilha

Saturnino Vieira não conseguia dormir, saiu da cama e foi à cozinha encher um copo com água para tomar o seu comprimido. Sentia-se infeliz, sabia que se não tomasse um comprimido seria dominado por pensamentos soturnos. Todo homem é uma ilha, você não vai ouvir sinos tocarem, ele pensava, olhando o copo em sua mão. Por alguma razão devia tomar o comprimido com água, ainda que eles, pequenos e cobertos por uma camada lisa e adocicada, não precisassem de ajuda para escorregar pela sua garganta. Ele era uma ilha, o resto era conversa fiada. Enquanto fosse vivo, ficaria sozinho na ilha. Morto, não sabia o que aconteceria. Provavelmente nada.

Claro que era melhor estar vivo que morto. Por enquanto. Mas sabia que seu insulamento não tinha fim, comprimidos e mulheres faziam efeito apenas por algum tempo. Todos os prazeres eram fugazes. Todo diálogo era de surdos. Ninguém entendia ninguém.

Passou pelo quarto, o copo com água na mão, para ir ao banheiro, onde os comprimidos estavam guardados, numa gaveta do armário sob a pia.

“Essa água é para mim, Saturnino?”
“Pensei que você estava dormindo.”
“Acordei quando você levantou. Tenho o sono muito leve. Essa água é para mim?”
“É.”
“Como é que você sabia que sempre ao acordar eu bebo um copo de água antes de sair da cama?” “Sabendo.”
“Quando durmo fora de casa eu sempre esqueço de colocar o copo com água na mesinha de cabeceira. Obrigada.”
A moça estendeu a mão e pegou o copo. Bebeu a água toda.
“Você é danado. Nunca ninguém fez isso, me trazer um copo com água quando acordo de manhã. O que mais você sabe sobre mim que eu não lhe contei?”
“Sei tudo sobre você.”
“Mas eu não lhe contei nada. Só o meu nome.”
“Mas eu sei.”
“Diz uma coisa.”
“O quê?”
“Quantos anos eu tenho?”
“Vinte e dois.”
“Errou. Tenho vinte.”
“Você tem vinte e dois. Não adianta mentir para mim.”
“Está bem, tenho vinte e dois. Onde foi que eu nasci?”
“Tenho que botar a mão sobre a sua cabeça.”
“Qual o problema? Você botou a mão em outros lugares piores. Anda, põe a mão na minha cabeça.” “Minas Gerais. Mas veio para o Rio muito pequena.”
“Como é que você sabe onde eu nasci e que eu vim para aqui muito pequena?”
“Vi quando botei a mão na sua cabeça. E também que o seu nome verdadeiro não é Luana.”
“Qual é o meu nome?”
“Maria da Conceição. É mais bonito que Luana.”
“Você é um bruxo. Não quero saber mais nada.”
“Está bem.”
“Se tivesse esse dom eu ganhava toda semana na loteria.”
“Loteria não tem cabeça para eu botar a mão.”
“E café? Você também traz café na cama para as moças?”
“Não.”
“Quer que eu faça o café? É só me mostrar onde estão as coisas.”
“Eu tenho um encontro com um sujeito. Negócios. Tenho que sair logo.”
“Hoje é domingo. Dia de descanso. Você não quer transar comigo outra vez? Não gostou?”
“Gostei. Mas vou ter que sair.”
“Você me chama novamente?”
“Chamo.”
“Não vai perder o meu telefone.”
“Não perco. É melhor você se vestir.”

A moça andou nua pelo quarto na frente de Saturnino, fingindo que procurava as suas roupas que estavam sobre uma cadeira. Saturnino olhava para ela pensando no comprimido que iria tomar.

“Você acha o meu corpo bonito?”
“Acho. É muito bonito. Mas eu tenho que sair. Anda, veste a sua roupa.”
“E eu não faço nada, nem regime, nem malho. Olha a minha barriga. Meu bumbum. Não parece que vivo fazendo exercício? Nunca entrei numa academia, como a maioria das minhas colegas. Ei! em que você está pensando? Está com um olhar muito estranho. De um homem perdido numa ilha deserta.”
“Olhar de quê?”
“De um homem perdido numa ilha deserta.”
“Como foi que você pensou nisso?”
“Você ficou chateado? Por favor, não fica chateado comigo.”
“Não estou chateado. Só quero saber como foi que você pensou nisso.”
“Não sei. Veio na minha cabeça.”

Saturnino ficou calado enquanto a moça, desapontada, se vestia.

“Desculpa qualquer coisa errada que eu fiz. Me telefona”, ela disse, dando um beijo de despedida no rosto de Saturnino.
“Fica”, disse Saturnino. “Vamos para a cozinha. Vou te mostrar onde estão as coisas para fazer café.” “Você não tem que sair?”
“Não. O sujeito que ia se encontrar comigo não vai aparecer.”
“Como é que você sabe?”
“Sabendo.”
“Se um dia eu me casar, quero que seja com um homem mágico como você. Pode me chamar de Conceição, já estou gostando do nome.”

Saturnino contemplou o rosto desarmado da moça.
“Mágica é você”, ele disse.

Mas o sono dela não era tão leve como dissera. Saturnino levantara no meio da noite sem que Conceição acordasse, e espiara a carteira de identidade na sua bolsa. Mas isso ele não disse para a moça, ao tomarem café com torradas.

Nem depois, quando voltaram para a cama.
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Rubem Fonseca - Pequenas Criaturas

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