TU ACREDITA EM SONHOS?
-Tu
já leu Kafka?
-Já,
mas faz muito tempo, ainda estava na escola. Que é que tem?
-Nada,
só estou me sentindo como um personagem dele.
-Qual
personagem?
-E
isso importa?!
-Deve
importar.
-Sentir-se
um personagem do Kafka já é ruim demais, não importa nada.
-Sabendo
qual personagem é, de qual livro, você pode tentar entender melhor
a situação.
-Tu
acredita em sonhos ou coisas assim?
-Tipo,
você tá falando de significados?
-É,
isso aí.
-Que
nada, isso não existe.
-Você
acha?
-É...
Mas minha irmã tem um livro, tipo um dicionário de sonhos, e às
vezes eu vô lá, dou uma olhada.
-E
aí?
-E
aí nada. É tudo uma merda. As coisas que sonho nunca significam o
que dizem no livro.
-Como
assim?
-Você
sonha uma coisa e o livro diz o que significa, tipo o que pode
acontecer com você. Mas nunca o que sonho acontece como que eles
dizem.
-Então
você acredita, sempre vai ver o que é.
-Acredito
porra nenhuma, é só costume, é igual a ligar a TV, você já sabe
o que tá passando, mas mesmo assim liga pra ver o que tá passando.
-Sei
lá, acho que acredito no significado deles.
-Porra
nenhuma.
-Uma
vez sonhei que andava na rua e via um pedaço de carne crua no chão.
-E
aí?
-Bom,
fui consultar uma mulher que lê mão. Ela disse que era coisa ruim,
era mau presságio.
-E
o que te aconteceu contigo de ruim depois do sonho?
-Comigo
nada, mas com a minha mãe aconteceu. Ela morreu.
-Ela
tava com câncer, Daniel. Ela ia morrer de qualquer jeito!
-Sei
não cara.
-Tudo
que tá na tua cabeça só tá na tua cabeça, tu vê o mundo e lá
dentro da tua cabeça tem tipo um liquidificador, e eles batem tudo e
te devolvem em pedaços, em papa, quando você tá dormindo. Num é
nada mais que isso.
-Sei
lá.
-Tu
tá estranho. Fica com esse papo de Kafka e sonhos e coisa e tal. Tu
tá é lendo demais.
-Bom,
sei lá...
-De
toda forma, se esse lance de sonho funcionasse pra algo, eu daria
tudo mesmo era pra sonhar com os números da mega sena. Já conheci
gente que jogava sempre, e nunca ganhava nada. Mas diziam sempre que
um dia ainda sonhariam com os números.
-Isso
seria bom.
-Aí
sim.
Um
apito tocou. Levantaram os dois do banco
duro de madeira e voltaram para o segundo turno noturno do trabalho
desgastante que pagava pouco. Do lado de fora ficava a escuridão
colhendo as estrelas.
29/04/2011
04:18
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